Coluna Do pasto ao prato, escrita pelo Médico-veterinário e sócio-proprietário da Assessoria Agropecuária FF Velloso & Dimas-Rocha, Fernando Velloso
A diferença entre o professor e o aluno é o número de horas de leitura. A frase não é minha. O Prof. Juca (José Luiz Vasconcelos) é que me dizia isso quando eu frequentava o laboratório de embriologia na FAVET UFRGS. Participei ali de um grupo de seminários, onde discutíamos artigos de reprodução sob orientação dele. Ao final, ele sempre reforçava que deveríamos ler as referências também. Um dia, um colega me pegou lendo a lista de referências bibliográficas de um artigo sobre seleção animal e me perguntou o que eu fazia. Respondi: estou lendo a lista de artigos que o texto referencia e o nome dos autores. Aí o colega me cutucou: não adianta ler só a lista de fontes, tem de ler os artigos citados. Nos dias de hoje, se vê muita citação de artigos, mas receio que com pouca leitura deles ou das fontes. Estamos na era web, era Whatsapp e era influencers. Eu chego até a ouvir: “muitos trabalhos demonstram isso ou aquilo”, mas fica sempre aquela dúvida sobre se quem fala realmente leu o que sustenta a sua opinião.
Recentemente, recebi um pedido num grupo de ex-colegas da pós-graduação: “o Prof. Júlio Barcellos está procurando esta lista de livros que emprestou para alguns alunos e precisamos localizar”. Como bom gestor, o professor delegou essa tarefa para que um colega resolvesse essa missão. Na listinha, estavam vários clássicos e leituras obrigatórias para quem pretende trabalhar com pecuária. Eu não estou na relação dos que retiraram livros emprestados no gabinete do professor, mas me estimulei a localizar alguns livros em meu guardados. A pessoa com distração gosta de atividades novas e que a tirem da frente do trabalho sobre a mesa. E lá fui eu atrás do Rovira, Dutto, Tabare Sobrero, Campbell, Hafez, Wiltbank e outros parceiros de prateleira. Eu entendo o querer do Prof. Julio em resgatar esses livros. Fazem parte da nossa memória afetiva. Quando os livros estão por perto, temos a sensação de que o conhecimento ainda nos pertence. Não importa se podemos consultar qualquer coisa rapidamente na internet. O livro está num patamar superior. A consulta na internet é que nem comida de micro-ondas. Até alimenta, mas não tem o mesmo sabor que a comida de verdade.




Acho que os estudantes de hoje não manuseiam livros como o meu pessoal da época da graduação ainda nos anos 90. Eu não era dos alunos mais aplicados e com melhores notas, mas lia muito sobre bovinos e pecuária. Quanto mais lia, mais queria ler. O acesso a bons livros não era tão facilitado como hoje, logo aproveitávamos as viagens e eventos para nos abastecermos de livros que buscávamos ou de novidades. Em Livramento, fui influenciado por meu primo e colega veterinário Ricardo Furtado a buscar os livros técnicos do Uruguai e da Argentina. Eu era bixo ou estava nos primeiros semestres e ele me recomendava que, para a pecuária do sul, eu iria achar publicações muito boas e mais próximas da nossa realidade nesses livros do que nas publicações brasileiras com nelore, braquiária, cerrado, etc. Ouvi as orientações e fui procurar os livros e informes técnicos do INIA, INTA, FUCREA, etc. Por sorte, parte desses livros eu encontrei em uma livraria de Rivera mesmo. Alguns outros fui tendo acesso nas viagens que pude fazer na graduação para estágio ou visitas, especialmente no Uruguai.
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Lembro que aguardávamos com expectativa a publicação do Anualpec para nos atualizarmos sobre o rebanho brasileiro, os abates, os custos de produção, as relações de troca do gado gordo por reposição, dos avanços de áreas de agricultura e da produção das carnes alternativas à bovina. Eu ficava rondando o estande da Gerdau na Expointer até conseguir um Anualpec. Em função disso, recebi, por alguns anos e por correio, bons boletins técnicos do Clube Amigos do Campo da Gerdau. Dei um Google e verifiquei que, em 2022, o Anualpec chegou à sua 29º Edição. Em palestras, num passado nem tão distante, era comum a citação: “conforme dados do Anualpec”, o rebanho brasileiro cresceu tanto em tais estados, etc.
Ainda na graduação, fiz intercâmbio rural na Austrália por um ano, entre 1998 e 1999. Morei sempre em fazendas por lá e num período em que internet discada era um luxo. Logo, deve ter sido o período que mais li em minha vida, pois tempo eu tinha bastante e bons livros técnicos eram abundantes, especialmente do CSIRO (a EMBRAPA deles) ou do MLA – Meatand Livestock Australia, o instituto da carne de lá, algo parecido com o INAC do Uruguai. Eu fazia o pedido de compra por fax e recebia os livros por correio. Enquanto eu lia um livro, eles me despachavam outro. Funcionava.
Em meu estágio curricular em 2000, a internet já estava mais popularizada e mudávamos um pouco a forma de estudar. Recordo que viajei para a Fazenda Colorado (Araras/SP) cheio de artigos impressos na mala. A maior parte busquei no site Milkpoint. Nesse período, estavam surgindo os grandes portais de informação. Acho que até o termo portal não se usa mais.
Aprecio mexer e folhar esses livros antigos que tenho em casa. São fáceis de serem relidos em poucos minutos, pois sempre tive o hábito de sublinhar e grifar os trechos mais importantes. Esses livros estão cheios de setas, chaves, sublinhados e até com resumos de itens mais importantes. Ler esses livros já lidos é como acompanhar o folheto da missa: a melhor parte está em negrito, quando a gente pode participar e cantar, nem que seja para o amém final. Dizem que a gente não se banha no mesmo rio por duas vezes e com os livros é o mesmo. O leitor muda. E o livro está ali quietinho esperando a tua nova versão.
Sobre citar clássicos e leituras obrigatórias ao profissional de pecuária, lembro bem de muitas vezes ouvir: tá lá no Rovira, olha lá! Manejo de campo nativo, requerimento da vaca de cria, sistemas de cruzamento, desmame precoce e muito mais? Tá no Rovira – diziam. E é verdade.
Em tempo: um dos livros que o Professor Júlio Barcellos emprestou e procurava (ou talvez ainda o procure) estava na listinha como Rovira – “o novo”. Ele se refere à edição de 1997: “Manejo Reproductivo de los Rodeos de Cria em Pastoreo”. Tenho em casa essa edição do “novo” e também a primeira edição de 1973. Os conceitos seguem valendo e ainda temos espaço para aplicar muito do que ali consta em nossa pecuária.
Aos colegas que gostam de reprodução de bovinos, lembrei-me de “Infertilidade na Vaca”, de Grunert e Gregory. O quê? Não conhece? Então, te larguei pras cobras…