Coluna Do pasto ao prato, escrita pelo Médico-veterinário e sócio-proprietário da Assessoria Agropecuária FF Velloso & Dimas-Rocha, Fernando Velloso
Neste último Natal, a minha esposa me presenteou com um relógio destes digitais. Está na moda. São bonitos. Eu tinha receio de comprar com medo de viver olhando notificações de mensagens, alertas e tantas outras coisas (nem tão boas) da vida tecnológica. Será que vai viver vibrando no meu pulso, me deixando mais ansioso? Era a minha resistência. A ideia dela era outra, me presentear com algo de que gosto e me estimular a prosseguir nas minhas caminhadas diárias. “Ele vai contar os teus passo e tuas horas de sono” ela me alertou. Senti que eu teria um rastreador comigo. O filme 1984 de George Orwell segue atual.
Conversando com o nosso Diretor da Ag Pec, Eduardo Hoffmann, comentei com ele que passava quase todos os dias de manhã cedo numa casa de que gostamos muito aqui na zona sul de Porto Alegre. Aí passei a enviar algumas fotos da minha passada por ali. Tipo: Acorda Pedrinho, que hoje tem campeonato! Foi-se criando uma meta pra mim de não atrasar muito a foto rotineira. O ponto da foto está a pouco mais de 2 km da minha casa, na beira do rio Guaíba (não me corrijam pra chamar o rio de lago, já tem direito adquirido em relação ao nome). Tento fazer caminhadas/corridas matinais quando estou por aqui. Não são corridas porque faço um trecho bom caminhando rápido. Não é só caminhada porque acelero o meu petiço e até faço uns pedaços correndo. As andaduras que uso são o tranco e o galopito. O cavalo que tranqueia e tem o galope de camperear é uma bondade pra ele e pra coluna do campeiro.
Escrevi um texto sobre esse tema: O Poder do Hábito na Pecuária de Corte (dez/18). Agora, tento unir, nessa conversa, a força do hábito e a noção da finitude do tempo (ou do nosso tempo). Estou envolvido com a pecuária desde muito pequeno, em função das propriedades rurais de meus avós (dos dois lados), de alguns tios, do meu gosto pelo cavalo, depois pela faculdade e pelo exercício profissional. Porém, somente assumi funções e responsabilidades de administrador ou produtor rural faz menos de 10 anos, com meus 40 anos. Em função dos caminhos da vida, a minha mãe e um tio nos faltaram antes de meus avós e acabamos pulando uma geração nesta questão sucessória. Esta minha explicação é pra justificar que comecei a ver a “minha pecuária” como uma atividade de, talvez, 25-30 anos. Meu ponto de partida foi no meio da estrada.
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Um “influencer” que fala bastante sobre como gastamos os nossos dias é o Marcos Piangers, ex-comunicador da RBS (Rede Globo aqui no Sul) e autor do livro “O Papai é Pop”, no qual ele trata sobre a paternidade, relação com as filhas dele e essa busca de equilíbrio entre trabalho e família. Das entrevistas dele a que assisti, o que mais me pegou foi essa questão da “finitude do nosso tempo”. Ele gosta de grifar que temos só 4 ou 5 apresentações na escola na vida da criança e, talvez, só 13 verões com os filhos conosco e por aí vai. Outra pessoa de quem não recordo agora, já fez analogias similares para a agropecuária, onde temos só 30 lavouras de verão pra colher ou tantas safras de terneiros pra desmamar. A perspectiva de que esses ciclos são renováveis e sem fim não nos ajuda a ter mais disciplina nem bons hábitos, seja com a família, com a lavoura ou com o gado. Fica aquela impressão de que, na próxima vez, vai ser melhor.
Alguns comportamentos protelatórios que temos nos atrasam. E nos afetam o bolso também. Os atrasos de 2 semanas na compra ou na distribuição do sal, da reforma do cocho, da instalação dum bebedouro, da limpeza dum açude, do aparte dum gado, do ajuste da lotação de um campo, por exemplo, equivalem a 4% do tempo do ano ou de 8% a 12% do tempo da produção do campo nativo e por aí vai. Ganhos ou perdas dessa magnitude são a margem ou o resultado de algumas atividades produtivas ou comerciais.
As rotinas a que nos dedicamos com disciplina nos ajudam a produzir mais e a viver melhor. O controle estratégico das verminoses e carrapatos é um calendário e deve ser cumprido como tal, os manejos para adequação de carga e lotação são tarefas rotineiras e devem ser realizados “em tempo” e não atrasados. Na minha rotina, notei que os pastoreios rotativos nos mostram com mais facilidade os ajustes necessários, pois é mais visível perceber que a área está folgada ou apertada. A olhos vistos, nós temos que agir. O pastoreio contínuo ou tradicional demora mais pra apitar o alarme. O meu amigo e cliente Fábio Ruivo, um dia, me comentou: “Velloso, homem e estância têm que ter sistema. Pode cuidar que os homens de sucesso são sistemáticos”. Na hora, entendi em parte o que ele falou. Hoje, compreendo mais e concordo totalmente. Chamamos de “sistema”, na nossa pecuária, os bons hábitos e os bons processos. Ser sistemático é ser caprichoso ou metódico.
Neste carnaval, fizemos lá fora um desmame antecipado. Pela primeira vez, realizamos essa venda em fevereiro em função da estiagem, mas o plano principal era salvar as vacas. Vender terneiros mais pesados ficou pro próximo ciclo. Quando apartamos as vacas dos terneiros na mangueira, notei que o gado já estava bem condicionado. Foi fácil. Mas foi a última vez com aqueles terneiros. O processo vai reiniciar; e o treinamento também com a geração que vai nascer em 2023. Se por um lado critico um pouco essa postura de que “pro ano” faremos melhor, também admiro e respeito a vibração dos criadores que, em todos os anos, se entusiasmam e recarregam suas baterias com a nova produção. Chego a ouvir: “Velloso, tens que ver a terneirada desse ano. Vais te apavorar. Que terneiros!”. O nosso tempo tem finitude, não podemos nos esquecer disso; os nossos sonhos, porém, se renovam a cada nova parição.