O Projeto Sulco, que difunde a tecnologia de irrigação, por meio de sulco-camalhão, para a soja em ambientes tradicionais do arroz, no Rio Grande do Sul, também tem sido experimentado em lavouras-piloto de milho. Os resultados – técnicos e econômicos – mostram-se promissores
Engenheiros agrícolas Amilcar Silva Centeno, sócio-diretor da Centeno Agrointeligência, e José Maria Barbat Parfitt, pesquisador da Embrapa Clima Temperado
As terras baixas gaúchas correspondem a cerca de 4,5 milhões de hectares, dentre os quais em torno de 1 milhão são cultivados anualmente com arroz. Com uma demanda estagnada em torno de 12 milhões de toneladas e produtividades crescendo de maneira rápida, a área plantada, no Rio Grande do Sul, tem se mantido por volta de 1 milhão de hectares. Na falta de perspectivas para o arroz, os produtores estão buscando novas opções. A principal alternativa tem sido a soja, que já ocupa mais de 400 mil hectares, com um crescimento de 64% na área plantada nas várzeas arrozeiras nos últimos dez anos.
Porém, as culturas de sequeiro encontram grandes dificuldades para se adaptar às terras baixas, apresentando produtividades médias menores e com maiores oscilações entre safras. Isso se deve, principalmente, às características dos solos, em sua grande maioria rasos e com baixa capacidade de armazenamento de água, o que faz com eles sequem rapidamente durante os períodos sem chuvas, típicos da região, ao mesmo tempo em que apresentam deficiência de drenagem após as chuvas intensas que costumam ocorrer durante a safra.
Assim, não é raro encontrar situações em que a soja está sofrendo com a seca, enquanto a água passa ao lado em um canal de irrigação do arroz. Em outros momentos, a soja está afogada em áreas alagadas, a poucos metros de um dreno.
Vários produtores da região vêm tentando encontrar uma solução para este dilema. Alguns estão utilizando sistemas de aspersão, que têm alto custo e não resolvem a questão da drenagem. Outros estão tentando o uso de irrigação e drenagem superficiais, com a abertura de sulcos e drenos ou mesmo pelo alagamento da área. Porém, faltavam tecnologias, ferramentas, processos e insumos que pudessem ser reunidos numa solução integrada e comprovadamente eficiente e econômica.
Para buscar essa solução integrada foi criado o Projeto Sulco, que acabou de colher sua terceira safra, com resultados altamente positivos, tanto sob o ponto de vista técnico como econômico. O projeto vem sendo desenvolvido por um grupo de empresas e por produtores que se associaram de forma voluntária e cooperativa à Embrapa Clima Temperado. O objetivo do Projeto Sulco é difundir a tecnologia sulco-camalhão desenvolvida nas estações experimentais, em especial, na Embrapa Clima Temperado.
Fazem parte do projeto a Trimble, com os sistemas GNSS-RTK e Field Level II, para controle das operações de suavização; a Massey Ferguson, com as soluções para plantio e colheita; a PipeBR, com os sistemas de irrigação com o uso de politubos; a KLR, com as soluções para a construção dos sulco-camalhões; a Pioneer com sua tecnologia de produção de milho e a Centeno Agrointeligência, na coordenação-geral do projeto. Também foi fundamental para a execução do projeto a participação de um grupo de oito produtores parceiros, que conduziram as áreas-piloto em várias regiões das terras baixas gaúchas.
Nesse sistema, ao mesmo tempo em que se constrói o camalhão, também é aberto um sulco. Dessa forma, são criados, no camalhão, uma zona de cultivo com solo mais profundo e sem compactacão – ideal para o desenvolvimento radicular das culturas – e um sulco que, além de ser utilizado para a irrigação e drenagem da lavoura, também é utilizado como zona de tráfego para o rodado das máquinas. Esta técnica, denominada tráfego controlado, é uma das melhores formas de lidar com outro grande problema das lavouras: a compactação das áreas de cultivo.
Sequência de operações
Para a utilização do sistema sulco-camalhão, é preciso adotar uma sequência de operações que devem ser bem executadas para o sucesso da lavoura. A primeira operação é a suavização, fundamental para a implantação do sistema sulco-camalhão. Ela nada mais é do que a sistematização com declividade variada. Se comparada à sistematização convencional, ela movimenta menor quantidade de solo, degradando menos o perfil dele; sua execução também é mais rápida e econômica.
Antes da suavização, é feito um levantamento planialtimétrico da área, utilizando-se o sistema GNSS no trator e base RTK instalada próxima à área. Pela análise do levantamento planialtimétrico, o projeto é elaborado utilizando-se o software WM-Form da Trimble e definindo-se os cortes e aterros a serem executado na área. Na elaboração do projeto, é muito importante estabelecer a declividade mínima da área. Sempre que possível, deverá ficar entre 0,05% e 0,1%, de modo a eliminar as depressões existentes na área. Esses dados são transferidos para o Monitor TMX 2050, instalado na cabine do trator e que controla o trabalho de uma plaina tipo caixão, equipada com uma válvula hidráulica proporcional (PWM). A operação de suavização provoca a compactação do solo, o que torna obrigatório, na sequência, executar uma escarificação ou um preparo profundo.
A irrigação permite que as culturas expressem seu potencial produtivo, sendo assim é importante investir na qualidade do solo. Para isso, é essencial fazer uma boa correção e fertilizar para a produtividade desejada. A dose de fertilizante utilizado nas áreas do Projeto Sulco tem sido calculada para uma expectativa de cinco toneladas/hectare de soja. Entretanto, em muitas situações, essa produtividade tem sido superada, de modo que se pode utilizar uma expectativa ainda maior. Na cultura do milho, semeada em setembro, sugere-se utilizar uma expectativa de produtividade em torno de 12 toneladas/hectare.
A construção
Concluída a suavização e o preparo do solo, a próxima operação é a construção dos sulcos-camalhões. Os camalhões foram construídos com 90 centímetros de largura e com uma altura de, aproximadamente, 20 centímetros. Esse espaçamento permite um arranjo de plantas adequado, tanto de soja como de milho, como também possibilita o ajuste da bitola dos tratores e implementos, para que os rodados sempre transitem pelo sulco, evitando a compactação dos camalhões. A camalhoneira utilizada no projeto é a SulcoSystem, da KLR Implementos, que trabalha com discos e necessita em torno de 15cv por camalhão, operando numa velocidade em torno dos 15 quilômetros/hora.
Nas terras baixas menos declivosas (menos de 0,3%), típicas da região litorânea, recomenda-se utilizar sulcos com comprimento de, no máximo, 500 metros, o que possibilita irrigar num período menor do que 20 horas. Desse modo, haverá uma boa drenagem e uma irrigação rápida e eficiente.
Tanto a soja como o milho são semeados em duas linhas sobre os camalhões, com espaçamento de 30 centímetros entre linhas e de 60 centímetros entre linhas de camalhões diferentes (espaçamento pareado).
No Projeto Sulco, a semeadura da soja e do milho foram feitas com as semeadeiras pneumáticas Massey Ferguson MF513 e MF510, adaptadas para semear com espaçamentos pareados, e tracionadas por tratores Massey Ferguson modelos MF7722 (230cv) e MF6713R (135cv), com bitolas ajustadas para 1,80 metro e equipadas com pneus com 54 centímetros de largura, de modo a rodarem dentro dos sulcos. Os rodados da semeadeira também foram ajustados para rodarem dentro dos sulcos. O fertilizante foi colocado no centro dos camalhões, entre as duas linhas de semeadura.
Irrigação por politubos
A irrigação é feita através de politubos, fornecidos pela PipeBR, que também elabora o projeto do sistema com o uso de um software específico a partir de informações como a textura do solo e o levantamento planialtimétrico. Nesse projeto, são definidos a vazão, o tempo de irrigação, o comprimento de sulco e os diferentes diâmetros dos furos ao longo dos politubos. Recomenda-se que a irrigação seja feita com o uso de um conjunto de motobomba, de modo a obter uma maior precisão na vazão e da lâmina aplicada. O diâmetro dos furos é calculado de modo que, independentemente do comprimento do sulco, a água chegue ao final de todos os sulcos ao mesmo tempo, mantendo, assim, uniforme a taxa de infiltração.
Para determinar o momento da irrigação, foi utilizado o aplicativo “irrigação terras baixas”. Esse aplicativo de gestão de irrigação foi desenvolvido por meio de uma parceria entre o programa de pós-graduação da Universidade Federal de Pelotas/RS e a Embrapa Clima Temperado. O aplicativo informa ao produtor o momento correto de irrigação a partir de características do solo, data de semeadura, cultivar de soja ou milho, evapotranspiração potencial, obtida na estação meteorológica mais próxima da lavoura, e chuvas ocorridas na lavoura.
A colheita da soja foi realizada de forma longitudinal aos camalhões, com as mesmas plataformas utilizadas para a cultura do arroz. Para a colheita de milho, foi utilizada uma plataforma Massey Ferguson com 45 centímetros de espaçamento entre linhas, com excelente desempenho.
Resultados em três safras
O Projeto Sulco implantou áreas-pilotos ao longo de três safras: 2019/20, 2020/21 e 2021/22 nos municípios de Camaquã, Rio Grande, Capão do Leão, Jaguarão, Formigueiro, Cachoeira do Sul e Dom Pedrito. As três safras tiveram regimes hídricos diferentes; alguns muito críticos, com longos períodos de estiagem, principalmente nas safras 2019/20 e 2021/22, quando ocorreram expressivas perdas de produtividade nas lavouras do estado. Porém, ao longo de todo esse período, as áreas do projeto apresentaram produtividades elevadas e consistentes.
A produtividade média, ao longo das três safras, foi de 76,8 sacas/ha, em média 29,6 sacas/hectare de soja a mais do que nas áreas não irrigadas da mesma propriedade (Figura 1). Após uma primeira safra de ajustes, nas duas últimas safras, obtiveram-se resultados muito próximos ou acima da meta estabelecida de cinco toneladas/hectare. Uma das áreas do projeto alcançou, na safra 2020/21, a produtividade de 105,8 sc/ha, muito próximo do potencial produtivo da soja em terras baixas do Rio Grande do Sul, estimado pela Universidade Federal de Santa Maria/RS em 107 sc/ha.
Mesmo em anos mais chuvosos, como na safra 2020/21, as áreas do Projeto Sulco produziram, em média, 26,3 sacas a mais por hectare do que as áreas convencionais adjacentes do mesmo produtor, demonstrando a eficiência do sistema sulco-camalhão também na drenagem das áreas. Tão importante quanto a alta produtividade, é a estabilidade da produção ao longo de várias safras tão diversas em clima, inclusive com a ocorrência de longos períodos de estiagem nas safras 2019/20 e 2021/22, quando houve grandes perdas nas lavouras de sequeiro do estado.
Figura 1: Produtividade média de soja nas safras 2019/20, 2020/21 e 2021/22
Custo extra de 3,5 sacas/hectare
O uso da tecnologia sulco-camalhão também demonstrou excelente viabilidade econômica. Ao longo das três safras, o custo adicional médio foi de 3,5 sacas/hectare, calculado ao preço médio de comercialização de cada safra (Figura 2). Esses custos adicionais incluem a suavização, a construção dos sulco-camalhões, a aquisição dos politubos e o custo da água e da energia para irrigação. Cabe enfatizar que a suavização é um investimento, sendo adicionado aos custos na forma de depreciação em cinco anos.
Figura 2: Custos adicionais do sistema sulco-camalhão (suavização,instalação, sulcação e irrigação)
Milho: meta de 200 sc/ha
O excesso ou a falta de água são os fatores mais limitantes para o bom desempenho da cultura do milho nas terras baixas. Como o sistema sulco-camalhão tem demonstrado ser uma excelente ferramenta para solucionar essas duas limitações, o Projeto Sulco implantou, nas safras 2020/21 e 2021/22, também a cultura do milho utilizando a tecnologia sulco-camalhão.
Foram implantadas quatro áreas-pilotos em diferentes regiões, destacando como principal objetivo avaliar a potencialidade da cultura. Na primeira safra, foi implantada uma área em Jaguarão, alcançando um resultado de 155 sc/ha. Já na segunda safra, foram três lavouras em Jaguarão, Cachoeira do Sul e Dom Pedrito, tendo alcançados resultados significativos, com produtividades de 125 a 170 sc/ha, mesmo num ano de longos períodos de estiagem e temperaturas superando os 45°C durante o pendoamento da cultura. A meta do projeto é alcançar produtividades sustentáveis que superem os 180 a 200 sc/ha. O sistema também demonstrou excelente viabilidade econômica, com custos adicionais médios de 9,1 sc/ha, a um preço médio de comercialização de R$ 102,00/sc.
A viabilização da produção de milho nas terras baixas, com segurança e alta produtividade, poderá mudar a realidade do setor, que importa, por ano, em torno de 3 milhões de toneladas de milho, principalmente para sustentar sua grande produção de frangos e suínos. Isso significaria cultivar 300 mil hectares de milho no sistema sulco-camalhão, enquanto as terras baixas disponíveis somam mais de 2 milhões de hectares. Assim, a produção de milho, nas terras baixas, poderia reverter esse quadro, transformando o Rio Grande do Sul num estado exportador de milho.