Para o presidente da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), recentemente reeleito para o biênio 2022/24, Gedeão Silveira Pereira, em três décadas, o Brasil deve ocupar a
liderança mundial na produção de grãos de carnes. A projeção leva em conta uma experiência de 50 anos como médicoveterinário, período no qual viu o País deixar de ser importador de alimentos e ingressar no seleto grupo dos exportadores agropecuários. A vivência no campo, e como líder setorial, também lhe conferiu a missão de conduzir a diretoria de Relações Internacionais da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o que lhe faz um dos brasileiros mais gabaritados para falar sobre a atual
dinâmica do mercado internacional de proteína bovina.
Revista AG – Como você avalia a produção e o consumo de alimento em nível mundial atualmente?
Gedeão Pereira: Existe uma crescente necessidade por alimentos, pois, além do aumento vegetativo da
população, temos países em vigoroso avanço econômico, o que, da noite para o dia, traz o ingresso de estômagos adultos para a sociedade de consumo. São pessoas que vinham de uma subalimentação, digamos assim, e que, de repente, passaram a consumir. O exemplo mais velado disso é o da China, um país com 1,4 bilhão de pessoas e em pleno crescimento econômico, que não deve diminuir o consumo de alimentos nem mesmo com a crise energética que, segundo notícias, avizinha-se em seu horizonte. Temos também outros países asiáticos, como Indonésia e Vietnã, que estão nessa pegada, porém, com
populações bem menores.
Revista AG – Qual posição exatamente ocupa a produção agropecuária brasileira nesse cenário?
Gedeão Pereira: Nosso País é outro fenômeno na história da humanidade, pois, nos últimos 30 anos, tornou-se grande potência mundial do agronegócio. Então, se, outrora, o Hemisfério Norte era composto por países ricos, com estratégia de guerra e estocagem de alimentos, e o Hemisfério Sul, pelos países pobres, hoje, com a entrada do Brasil nesse cenário, a humanidade come da mão para a boca. Isso porque ambos os hemisférios possuem as duas grandes agriculturas do mundo, a americana e a brasileira. Quando uma colhe, a outra planta, o que é suficiente para manter a humanidade relativamente.
Tornamo-nos uma das maiores potências agropecuárias mundiais. Em função disso, ferimos outros
países – porque nações não têm amigos, têm interesses satisfeita. Nunca se teve tanto alimento disponível, mesmo com tanta gente passando fome no mundo, principalmente na África, na Ásia e
no Brasil, embora menos do que era no passado. Não vamos citar aqui o problema da Covid – que, também, nos trouxe muitas consequências negativas. Vamos falar da nossa responsabilidade, do nosso País, que vai continuar crescendo em sua agricultura. Já vemos no horizonte uma produção de 300 milhões de toneladas de grãos para as próximas duas ou três safras. E o número vai continuar evoluindo.
Revista AG – Quais são os obstáculos do Brasil no mercado internacional de alimentos?
Gedeão Pereira: Sempre tive uma grande preocupação com relação à sanidade animal e vegetal. Para garantirmos a performance nos mercados internacionais, precisamos ter garantia de sanidade. E o melhor
exemplo de todos é justamente o que está acontecendo com os casos de vaca louca, recentemente corridos no Brasil. O que isso está nos custando? O dano é quase incomensurável. Saímos de um boi que estava com uma precificação muito boa e despencou devido a uma interpretação e a um jogo de mercado. O Brasil continua sem apresentar risco para a doença, inclusive com reconhecimento disso pela Organização Internacional de Saúde Animal (OIE), mas o suficiente para nosso maior cliente, a China, bancar a história para fazer o preço da carne baixar. Essas coisas são difíceis de ser equacionadas. Aliado
a isso, vivemos um momento de avanço com relação à aftosa. Hoje, temos cinco estados e duas regiões
do Brasil livres da doença sem vacinação, o que é um passo fundamental e importante no processo de
mudança na imagem de um Brasil relapso, e que, realmente, não é.
Revista AG – O que a estratégia da China com relação à carne brasileira ensina?
Gedeão Pereira – Quanto mais altos os picos, mais fortes os ventos. É isso que está acontecendo. Para
nós, brasileiros, o mercado mundial é uma experiência nova. Quero entender que o caso da China é algo pontual porque o chinês é muito negociante, muito brigador pelas suas posições. O país é uma potência mundial ascendente, possui a segunda economia e a maior agricultura do mundo, contudo, insuficiente para alimentar sua população. Enquanto joga com o Brasil, compra carne do Uruguai e da Argentina, pois estão numa briga com a Austrália, com quem arrumaram briga por puxarem muito carvão de lá. Veja só que tipo de energia usada por eles, absolutamente poluidora, e quem incomoda é o Brasil, não é? (Risos). Hoje, a diferença do preço do boi do Uruguai para o Brasil é de mais de R$ 100,00 a arroba. Em contrapartida, não tivemos o poder aquisitivo da nossa população para segurar essa queda, principalmente na situação pós-Covid.
Revista AG – Qual o real peso da questão ambiental brasileira neste jogo?
Gedeão Pereira:
As questões ambientais vêm aflorando fortemente, misturadas com interesses e questões ideológicas de ONGs, que detém outras visões de processo. De qualquer forma, o que ficou na humanidade foi o sentimento de que o Brasil agride o meio ambiente. Éramos importadores de alimento. Em 30 anos, tornamo-nos uma das maiores potências agropecuárias mundiais. Em função disso, ferimos outros países – porque nações não têm amigos, têm interesses-, principalmente, os da Comunidade Econômica Europeia. Coincidentemente, após acordo entre União Europeia e Mercosul, o presidente da França, Emmanuel Macron, contrapôs-se ao Brasil com a desculpa dos incêndios na Amazônia. Ainda tive oportunidade de, há alguns dias, ter reunião com embaixador inglês Peter Wilson, quando veio ao Brasil cobrar posições nossas referentes à Amazônia. Colocamos a ele todas as dificuldades de um país
continental como o Brasil, que tem 60% do território embaixo da Floresta Amazônica, inclusive com relação à fiscalização com relação a ações ilegais, sem CPF. Até fiz a seguinte pergunta a ele: “quantas ‘Inglaterras’ cabem dentro da Amazônia?” E ainda completei: “moro tão longe da Amazônia quanto o senhor, em Londres”.
Revista AG – Frente a isso, como se dará a participação do setor na COP-26?
Gedeão Pereira: A questão ambiental está no eixo central de todas as relações internacionais, tanto que nossa CNA está indo, agora, em novembro, para a COP-26 (Conferência das Nações Unidas Sobre Mudanças Climáticas), na Escócia. Vamos justamente mostrar porque nossa agricultura é uma das mais preservacionistas do mundo, porque a tecnologia de plantio direto é brasileira, que não mais aramos
o solo como seguem fazendo os produtores da Europa e dos EUA. Vamos mostrar que temos um código florestal que, possivelmente, é o mais restritivo do mundo, que temos 28% da cobertura florestal
mundial e, no entanto, somos atacados de uma maneira desastrosa por alguns países, notadamente, da Europa, que continua sendo um grande cliente da agricultura brasileira.
Revista AG – Qual sua avaliação com relação ao fim da vacinação contra a febre aftosa em alguns estados brasileiros?
Gedeão Pereira: Não foi uma decisão fácil, justamente, porque tivemos que avaliar o aspecto cultural da opção. Os três estados do Sul contam com uma proteção diferenciada: de um lado, temos o oceano Atlântico, obrigando-nos a cuidar apenas de portos e aeroportos. Ao Norte, temos o estado de São Paulo, e, ao noroeste, o do Mato Grosso, que continuam vacinando. Fora isso, a Leste, a Oeste a ao Sul, temos a República do Paraguai, a Argentina e o Uruguai, países que também seguem imunizando os rebanhos. Isso significa que estamos muito bem protegidos. Além disso, todos os exames necessários para comprovar a inexistência de atividade foram realizados. De qualquer forma, a confirmação ocorrerá
somente depois de termos rebanhos vacinados e não vacinados juntos, como é o caso de Santa Catarina, que não registra casos de aftosa há 17 ou 18 anos.
Revista AG – Quais os pontos de atenção para manutenção do novo status sanitário?
Gedeão Pereira: No Rio Grande do Sul, a educação é uma das nossas maiores preocupações. Volto, novamente, à questão cultural: o primeiro fiscal sanitário não é o Estado, mas o produtor rural. É ele quem estará com a anomalia no campo e terá de comunicá-la às autoridades, se autodenunciando para que o problema seja controlado o mais rapidamente possível. Essa agilidade será fundamental para o envio da equipe técnica à propriedade para avaliar os animais e coletar material para diagnóstico, já que a aftosa pode ser confundida com outras doenças, como estomatite, por exemplo. Agora, como vamos convencer este produtor a denunciar? A primeira tendência, e a mais natural, é esperar a continuidade dos sintomas por alguns dias para comunicar as inspetorias ou mesmo esconder a ocorrência do foco.
Tive uma experiência em minha própria casa, em 1986, quando registrei o primeiro foco de aftosa daquele ano no RS. Como veterinário, corri para autoridade sanitária e me autodenunciei. Realmente, a inspetoria foi lá e coletou material. Isolamos os animais, aplicamos uma vacina monovalente, uma perifocal, e a vigilância ficou em alerta. Estourou outro foco da doença. Adotaram o mesmo procedimento e o debelaram, mas sem rifle sanitário.
Revista AG – Como o pecuarista estará seguro para se autodenunciar?
Gedeão Pereira: Ele precisa ter uma segurança financeira para não prejudicado de uma situação como essa. Como vai abater seus animais e receber em precatórios? Fica difícil. Ora, vivemos em um estado brasileiro quebrado nas três esferas: federal, estadual e municipal. Então, precisamos dispor de um fundo vigoroso, fora do Estado, com decisão privada para que, rapidamente, o produtor seja indenizado. No
RS, temos o nosso Fundesa, um fundo público com administração privada, pago pelos próprios produtores, mas sem capital para bancar ocorrências dessa magnitude. Por isso, em outubro,
aconteceu nesta casa (sede da Farsul) um fato inédito no mundo: assinamos um seguro de R$ 315 milhões para o Fundesa. Assim, com prêmio de R$ 4 milhões, o Fundesa terá alçada para indenizar os produtores em até R$ 15 milhões, ficando valores superiores a esse a cargo da seguradora, que garante até R$ 300 milhões. Isso, sim, é uma garantia para ele se possa se autodenunciar com tranquilidade, já que estará economicamente garantido. A Farsul lutou por isso. É uma ideia que nasceu dentro desta casa e já está feita.
Revista AG – Quais serão os critérios para captação dos recursos?
Gedeão Pereira: O seguro é auto declaratório e será pago de acordo com a declaração de cada produtor, tanto dos que abatem quanto dos que trabalham com cria, recria ou genética. Entendemos que o valor virá do montante economizado com a compra das vacinas contra a aftosa, que equivale a uma
dose e meia ao ano por animal, já que o reforço ocorria somente nos exemplares de até dois anos. Então, estamos colocando o valor de R$ 1,00 por cabeça ao ano, tomando por base o rebanho declarado pelo próprio produtor. Por exemplo, se eu declarar ao Fundesa que meu rebanho é de mil animais,
contribuirei com R$ 1 mil/ ano. A partir desse recibo, minha declaração será aceita pela secretaria da Agricultura. O valor será de R$ 2,00/cabeça para os produtores de genética, o que não quer dizer que sejam indenizados em dobro, nem que, por hipótese, venham a rebeber o mesmo valor que
pagaram por um animal adquirido em exposição.
Revista AG – Como serão calculadas as indenizações?
Gedeão Pereira: Estamos estudando ainda como serão calculadas as indenizações. Faremos uma avaliação de valores para cada categoria animal, obedecendo a ás cotações de mercado. Outro passo será transformar o seguro em lei. Temos de levar a proposta para a Assembleia Legislativa do RS e o governador do RS, Eduardo Leite, precisa transformá-la em lei. Mas acreditamos não ter dificuldades por se tratar de uma questão sanitária.