Coluna Do pasto ao prato, escrita pelo Médico-veterinário e sócio-proprietário da Assessoria Agropecuária FF Velloso & Dimas-Rocha, Fernando Velloso
Participo de vários grupos de WhatsApp. Já nem sei se é bom ou não (dúvida). Alguns deles são específicos de selecionadores de raça “pura”. É a turma do Angus, do Brangus, do Hereford, do Braford, do Charolês e do Devon. Enfim, as raças que utilizamos e selecionamos aqui nessa pecuária do sul do Brasil. Ali é o espaço onde podemos discutir os desafios na produção de reprodutores, na comercialização e, eventualmente, da seleção dos animais.
Não está fora de ordem, pois o que menos observo são discussões sobre seleção nos grupos de selecionadores. Não é trocadilho. Não é crítica. É constatação. Talvez o assunto seleção já esteja meio superado, talvez a maioria já se rendeu aos programas de melhoramento e vamos correr atrás de números, talvez nem valha a pena começar essa conversa, pois seleção é tema como política e religião. Áreas da vida onde a lente fica meio desfocada pelas paixões ou embaçada pelas lágrimas.
Recentemente, li uma boa troca de mensagens sobre animais mais selecionados pela natureza do que pela mão do homem. Entrou em pauta a necessária discussão sobre adaptação ao meio ou seleção para produção, para a famosa “performance”. Contive-me e não participei. Fiquei até orgulhoso de mim: não entrar nesse ringue deve ser um amadurecimento. Maturidade um pouco tardia. Apesar de porte médio, devo ter biótipo tardio, que precisa de quase 50 anos para não entrar numa discussão em que não foi chamado. Daquela boa e espontânea discussão, me veio a ideia deste texto. A minha fonte de ideias estava meio seca como a estiagem no RS; os grupos me hidrataram.
Selecionamos os bovinos pela cabeça dos jurados, pelas forças da natureza ou pelas orientações do mercado?
Um termo que ouço repetidamente é o tal padrão racial: “temos de preservar a pureza, o standard, o selo, a beleza racial, a nobreza da raça”. Já ouviu algo assim ou semelhante? Duvido que não.
Mas como foram estabelecidos os tais padrões raciais? Um grupo de criadores une-se, forma uma associação de raça e descreve o que é padrão naquela raça e o que não é. Regulamenta-se. Aplica-se. As intenções são as melhores. O objetivo é multiplicar animais com aquelas características produtivas do grupo inicial; o visual dos animais é a ferramenta. O visual é tipo uma capa ou tampa dos genes que buscamos. Garrafa com rótulo de Coca Cola deve ter Coca Cola dentro.
O que me aborrece um pouco nas discussões sobre caracterização racial são algumas visões um pouco extremadas ou radicais. Exemplo: a cabeça do Angus é assim; se não for, não é Angus. É atípico, é impuro, etc. Parte-se do pressuposto de que a pureza está conectada intimamente com um padrão visual, porém esse padrão visual defendido é o retrato de um período do tempo. É a cabeça do Angus nas fotos dos anos 50 e 60, talvez. É um desenho num adesivo ou logotipo. É um período da linha do tempo da raça e do que era mais buscado ou multiplicado.
Visitei a Aberdeen Angus Cattle Society, em Perth na Escócia (jan/2009). É a entidade que controla a raça no Reino Unido desde 1879. Fiquei um pouco surpreso que a maioria das imagens que vi lá não se pareciam com os animais que chamávamos aqui de Angus original ou escocês. A entidade é quase uma viagem no tempo, cheia de vacas e touros importantes empalhados pelas paredes. Entre eles, estava o desenho da Old Granny 125 (Geração 1824), uma das matrizes mais famosas e fundadoras da raça. Essa matriz morreu aos 35 anos e teve 29 produtos. Ela tinha uma cabeça grande e comprida. Perguntei sobre esse Angus que chamamos de original, de porte pequeno, pata curta, de cabeça bem reduzida. Eles me responderam que a raça foi assim em um período da história. Por lá, vi também várias fotos ou desenhos de animais com úberes brancos ou ventres manchados. Nossa! É quase pornografia! Manchas brancas! Mas isso não é impureza, Velloso? Não sei responder. Vamos consultar os regulamentos.
Aos que já visitaram a Associação Argentina de Angus, no bairro Palermo, basta lembrar os quadros dos grandes campeões desde 1908 até a atualidade. A raça encolheu, cresceu, encolheu de novo e assim segue. E as cabeças, naturalmente, acompanharam os corpos. Curiosamente, o touro de 1908 é bem parecido com o que buscamos hoje. Eu e o colega Dimas Rocha participamos da 27ª Escuela de Jurados AnGus por lá em 2013. Foram cinco dias de imersão Angus e a parede cheia de quadros nos inquietou.
As exposições já nortearam ou norteiam ainda a seleção de alguns rebanhos. Entende-se que avaliaremos animais que tiveram as melhores condições de criação disponível e, simplificadamente, que as diferenças visuais são a genética. Agrupamos os animais em categorias por idade e o jurado aparta o que tiver de melhor. Junta os melhores novos com os melhores mais velhos e sai um Grande Campeão! Na sequência, massificamos o uso dessa genética e esperamos que os produtos sejam os melhores animais no campo. Às vezes, ocorre; às vezes, não. São conhecidos de todos as campeãs que deixaram muito poucos filhos ou não deixaram nenhum. São conhecidos os campeões que se tornaram pais Deca 10 nos sumários, ou seja, os seus filhos estão entre os 10% piores da raça, quando avaliados em programas de melhoramento. A genética foi pro mundo real e tropicou pela estrada esburacada.
As raças de leite adotaram, faz vários anos, o conceito do TrueType, ou seja, da vaca ideal fenotipicamente. Abordei esse assunto no texto “Mirem-se no exemplo daquelas vacas leiteiras” (Fev/2016). Na época, comentei que o modelo de vaca eleito pelos criadores havia sido atualizado em 2012, na 127ª Reunião Anual de Negócios da Associação Holstein USA. A pecuária de leite evolui e a vaca truetype também. Não sei de notícias da vaca truetype nas raças de corte. Temos dificuldade de realizar essas discussões em forma de colegiado e depois aceitar e aplicar as resoluções de grupo. Talvez existam mais criadores buscando o seu tipo de gado, e o seu truetype, do que a lenta discussão dos possíveis rumos da sua raça. Alguns corajosos fazem o seu caminho solo, selecionam o que acreditam, fixam características no seu rebanho e esperam que o tempo e o mercado reconheçam o valor daquela construção.
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O mercado é um grande norteador do que criamos e selecionamos, mas a indústria não tem preocupação se o que ela nos pede é muito caro para ser produzido, especialmente no rebanho de cria. Os frigoríficos não estão errados, estão somente buscando processar o que mais se vende e/ou o que mais lhe pedem. Se foi um terneiro “bolita”,de 300 kg vivo, vamos abater. Se é um boi pesado para exportação com 300 kgs de carcaça, vamos comprar. Simples assim. Essa preocupação de tipo animal é o dilema dos selecionador: como equilibrar a genética mais eficiente para o campo, para os compradores de touros, para a indústria e para o consumidor de carne. Tarefa complexa.
Alguns bons selecionadores trabalharam muito. Fizeram muito descarte. Fizeram muitas medições. Chegaram a um touro produtivo e adaptado às nossas condições. A parte que parecia mais difícil foi feita. Talvez. Agora, é o momento dos demais selecionadores e pecuaristas usarem esse bom touro nacional. Provável que a tarefa mais difícil seja essa.
PS.: Deixo as minhas homenagens ao Sr. Leonildo Potter, criador de Dom Pedrito, da Agropecuária Quiri. Faleceu no dia em que escrevi esse texto. Criou, selecionou e comercializou o Angus que acreditava ser o mais produtivo para os clientes. Viveu a alegria de ver os seus touros sendo muito disputados na pista de remate. Admiro o seu trabalho desde o Quiri N16, que conheci ainda nas visitas da faculdade. Sempre torci e sigo torcendo pela turma da Quiri!