De cada 100 calorias consumidas pelos humanos, 97 têm origem em um solo. As três restantes são provenientes do mar. Portanto, cuidar bem dos solos – leia-se, promover saúde a esse ambiente tão precioso – é uma missão, literalmente, de vida ou de morte para todos. E a acrescentar outro número: algo como um terço dos solos do mundo está degradado. Apenas no Brasil são 100 milhões de hectares comprometidos. Mas nem tudo está perdido. Bem pelo contrário: a agropecuária brasileira já aprendeu e sabe muito bem – um exemplo ao planeta – como promover uma agricultura ambientalmente sustentável lá no chão, sobre e sob a terra
Leandro Mariani Mittmann
Prezado produtor e prezada produtora rural, a sua propriedade realmente lhe pertence, mas o solo que se estende por todo esse universo é um patrimônio também da humanidade. Ou seja, tudo o que você estiver fazendo de bom para esse ambiente que recebe plantas e animais é um bem que está compartilhando com todos os seres humanos. Parabéns pelo empenho na conservação e, sobretudo, muito obrigado! Mas, naturalmente, suas irresponsabilidades se propagam a todos e a todas, independentemente da distância que estejam da sua lavoura. Uma conhecida frase sintetiza a relação do agricultor com o ecossistema de produção: “Não herdamos a terra dos nossos pais, mas, sim, a pedimos emprestada de nossos filhos”.
Muito tem sido feito pelas melhorias das condições dos solos agrícolas, sobretudo na agropecuária brasileira nos últimos anos e até décadas. A mencionar: o plantio direto, uma verdadeira revolução no que se refere à conservação do local de produção de alimentos, acaba de completar meio século de Brasil. Mas muito ainda há de ser implementado. Muito mesmo. E, sobretudo, efetivamente adotar a campo o que já se sabe que promove efeitos práticos e significativos nas melhorias das condições para que funcione bem essa “indústria” onde é “fabricada” comida a 8 bilhões de pessoas, a população global, número atingido em 15 de novembro.
E a situação dos solos mundo a fora é drástica. “O quadro de degradação de solos é crescente no mundo. Nos últimos anos, a tendência de ter solos degradados é cada vez maior. O percentual de 30%, 35% de solos degradados há alguns anos não só permanece como tende a aumentar”, resume Luiz Fernando Carvalho Leite, pesquisador da Embrapa Meio-Norte, o cenário dos solos agrícolas do planeta. “O grande responsável pelo processo de degradação do solo é o manejo inadequado por meio do sistema de produção agrícola considerado prejudicial à saúde do solo”, complementa.
Leite esclarece que o avanço da degradação pelo mundo se dá pelas necessidades de produzir comida para cada vez mais gente, assim como pelas maiores exigências quanto ao padrão de qualidade destes alimentos. “Ao mesmo tempo em que tem a necessidade de produzir mais alimentos e de melhorar a qualidade, essa necessidade acaba trazendo uma pressão maior sobre os recursos naturais. E lembrando que o solo é um recurso natural não renovável, o que significa que pode se esgotar tranquilamente”, adverte.
Para ele, ainda que os índices de degradação no planeta também se repitam no Brasil, a agropecuária brasileira é um exemplo na preservação em razão das práticas conservacionistas. E a erosão é a principal causa de degradação nos campos brasileiros, embora a compactação causada pelas grandes máquinas e o pisoteio de animais também sejam um grande problema nos últimos tempos. O plantio direto foi uma iniciativa importante para a recuperação dos solos brasileiros, assim como as ações conservacionistas mais recentes e com bons resultados – a exemplo a integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), prática esta a grande mudança na agricultura brasileira nos últimos anos.
Leia também
A pujança do agro gaúcho em Não-Me-Toque
.
Desafios para a inovação e a transformação digital
.
.
O pesquisador lembra que o plantio direto foi aprimorado com chegada da integração lavoura-pecuária (ILP), já que o método está inserido num sistema um pouco mais amplo e que inclui outros componentes além do agrícola, promovendo grande melhoria para a saúde do solo. Porém, adverte, esta e outras técnicas normalmente se restringem a grandes propriedades de regiões agrícolas mais desenvolvidas. E exemplifica que, na Caatinga nordestina, grandes áreas de pequenos produtores ainda utilizam como prática agrícola o “corte e queima”, uma ação muito danosa ao solo e ao meio ambiente.
Ou seja, não é possível estabelecer um padrão para a agricultura brasileira quanto a conservação de solo, principalmente em relação às tecnologias adotadas. “Há um espectro onde se tem uma parte dos produtores usando sistemas conservacionistas, aí sim capazes de reverter os quadros de degradação do solo. Esse espectro vai caminhando até o outro extremo, de sistemas tradicionais, onde o produtor utiliza uma área no sistema ‘corte e queima’, usa por um tempo e abandona naquela lógica de agricultura itinerante, trazendo um depauperamento do solo de grandes comprometimentos à produção agrícola ou à criação de animais”, descreve Leite.
Saúde, muita saúde ao solo
E a definição para um ambiente adequado e pleno para a produção de alimentos agora vai além de solo “fértil e de qualidade”, conforme pregado historicamente. A atual concepção, esclarece o pesquisador, mais ampla e sistêmica chama-se “saúde do solo”, muito mais representativa que fertilidade e qualidade, termos utilizados por 10 a 15 anos. “Então, quando se compromete o solo com um processo de degradação, se interfere nos serviços ambientais, na produção de alimentos, na mitigação de gases de efeito estufa, portanto na alteração climática e, em última análise, um comprometimento da saúde das pessoas”, explica.
A compreensão, portanto, vai além de se restringir ao solo. “Está tudo ligado, hoje, a um conceito mais recente de uma única saúde: a saúde de pessoas, animais ou ambiente. Não dá mais para compartimentar”, define. “A saúde é uma só, porque o solo é um elemento importante na paisagem e tem uma interferência na saúde dos animais que, por sua vez, produz efeito na saúde das pessoas e do próprio ambiente de uma maneira geral”. Ou seja, a piora da saúde do solo tem interface com pessoas, animais e ambiente de uma maneira geral, pois 97% das calorias consumidas no mundo têm origem em solos, complementadas por 3% dos oceanos, lembra ele. “Hoje, o grande papel do solo é associado à produção de alimentos. Existe até uma mensagem da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) que afirma ser no solo onde tudo começa, ou seja, ele é o ponto de partida deste processo”.
O tamanho dos solos degradados na agropecuária brasileira é de 100 milhões de hectares, dos quais aproximadamente 66 milhões estão em nível intermediário e uns 34 milhões em grau mais severo. “É uma área bastante significativa”, avalia o pesquisador da Embrapa Solos Aluisio de Andrade. A comparar: a superfície para produção de grãos no Brasil é de 70 milhões de hectares. E, conforme ele, a área degradada tem “potencial grande” de ser aproveitada, desde que com a adoção de um sistema de base mais sustentável.
O problema é histórico, relembra, e remonta aos tempos coloniais da produção intensiva de café e cana, e a erosão em alguns lugares redundou até em voçorocas. Depois, a adoção das práticas do plantio direto até promoveu efeitos benéficos, mas a chegada das grandes máquinas levou produtores a extinguir os terraços e as curvas de nível que continham as enxurradas. “A erosão também voltou mesmo em áreas em que se tem um nível tecnológico alto sendo aplicado”, lamenta. “Quando começa com pressão sobre essas terras, de antigas ocupações a até as mais recentes, essas áreas tendem a se degradar de formas mais rápidas”.
![](https://agranjatotalagro.com.br/wp-content/uploads/2023/08/banner_1190-x-250-1-1024x215.png)
Recuperação, o passo a passo
Mas a degradação pode ser revertida. Mais do que boa vontade, é preciso atender a uma série de etapas. “O primeiro passo é fazer um bom diagnóstico dessa área degradada ou em degradação. Identificar as causas da degradação, pois não adianta pensar em nenhuma estratégia de recuperação se não eliminar as causas, ou seja, o que está levando à degradação. Esse é o ponto principal”, menciona Andrade. E não pensar apenas na área degradada, mas também no seu entorno. Como tomar conhecimento sobre e a contribuição de banco de sementes quando a área estará destinada à restauração ecológica, se há excesso de pulverização na volta ou analisar se os processos erosivos no entorno estão piorando a situação da área a ser tratada.
Na sequência, avaliar a implantação das práticas estruturais, ou seja, mecânicas, que visam conter a força das enxurradas, inclusive sobre como armazenar mais água no terreno por meio e terraços, acopladas às bacias de retenção. Também melhorar a capacidade de fornecimento de nutrientes para as plantas, como fazer a adubação e a calagem, e para isso planejar uma série de estratégias, de adubos químicos e orgânicos, e também o uso de resíduos. Além de implantar plantas de cobertura que possam formar barreiras vegetais, assim como espécies para adubação verde, principalmente leguminosas.
Ainda implantar sistemas agroflorestais ou mesmo recuperar a própria pastagem, e para este cultivo promover a fertilidade e corrigir o pH do solo. “E tratar a pastagem como uma cultura. Não apenas como uma área em que você vai simplesmente colocar os animais e achar que não vai retornar ao sistema, de forma adequada, o que essa pastagem precisa”, acrescenta. “Por fim, a escolha das culturas, do sistema de produção dos animais, das cultivares que objetivam deixar este solo sempre coberto, seja com cobertura viva, seja com cobertura morta. E que esta área tenha uma diversificação de culturas que favoreça a ciclagem desses nutrientes e o controle do escoamento superficial e a infiltração de água no terreno”.
![](https://revista.agranjatotalagro.com.br/wp-content/uploads/2023/03/Solos-Reportagem-de-Capa-Luiz-Henrique-Magnante-Embrapa-FOTO-2-1-1-1024x768.jpg)
Cobertura de solo. O tempo todo
Entre as ações mais significativas para manter o solo preservado e com vida em suas entranhas está mantê-lo coberto – em tempo integral, acrescente-se. É um dos fundamentos do sistema plantio direto para a proteção da superfície para evitar a degradação intensa e a erosão, causadoras de perdas intensas de terra, corretivos e adubos, e no passado obrigavam a replantios. “A erosão era muito intensa”, descreve Júlio Salton, pesquisador da Embrapa Agropecuária Oeste, a realidade da agricultura brasileira nos anos 1970. “Porque todo o processo tem início quando a chuva impacta na superfície do solo e, estando descoberto, ele se desagrega e faz uma espécie de um selamento. Os poros entopem, a água não infiltra e passa a escorrer morro abaixo, levando o material que está na superfície”.
![](https://revista.agranjatotalagro.com.br/wp-content/uploads/2023/03/Solos-Reportagem-de-Capa-Embrapa-FOTO-3-1024x768.jpg)
Conforme ele, além disso, em regiões mais quentes, a temperatura do solo é um problema, principalmente nas fases iniciais da implantação das lavouras de verão. “E uma proteção da superfície com uma palhada ameniza essa temperatura. O processo de germinação e de desenvolvimento das culturas ocorre de uma maneira mais eficiente”, salienta. Assim como a palhada promove o controle de daninhas, a exemplo da buva, cujas sementes germinam se tiverem acesso à luz solar, e, portanto, com a palhada as plantinhas da invasora não se desenvolvem.
E os benefícios da proteção vão muito além, pois melhoram a germinação das culturas para a formação de um estande mais uniforme. Salton esclarece que é sempre mais relevante manter plantas vivas sobre o solo do que o pousio para o sistema solo-planta-atmosfera funcionar melhor. Apesar que nem sempre seja possível formar com facilidade uma cobertura viva, visto que a Região Central do Brasil enfrenta o período sem chuvas.
Entretanto, a sucessão soja e milho de segunda safra já ajuda demais. “É o ideal? Melhor ter o milho safrinha do que o pousio. Mas isso pode melhorar. Muitos produtores já utilizam o milho safrinha em consórcio com a braquiária como a ruzizienses, por exemplo, que é a mais comum”, afirma. “Então, além de ter duas espécies produtoras de grãos, a soja e o milho, à medida que se colhe o milho, fica a braquiária vegetando, e vai produzir massa e raízes até próximo ao plantio da nova safra de soja”, detalha. Dessa forma, o sistema possibilita plantas vivas todo o tempo praticamente. E poucos dias antes da semeadura da soja a braquiária é dessecada.
Quando por alguma razão, climática ou mesmo econômica, não seja possível o milho safrinha, a alternativa pode ser sorgo ou plantas de cobertura como braquiárias, nabo, milheto, crotalária, aveia. “São plantas que se desenvolvem com pouca chuva e proporcionam essa cobertura suficiente para proteger o solo nesse período”, acrescenta o pesquisador. No lugar ainda é possível colocar animais. “O que é muito melhor, porque um bom pasto e um bom manejo vão produzir muita raiz. Essas raízes vão ser muito importantes para melhorar a qualidade física, principalmente, e biológica do solo, pois criam agregados estáveis, poros, facilitam a infiltração da água, aeração e crescimento das raízes da soja”.
Bem ao meio ambiente
O produtor tem uma série de retornos por manter seu solo devidamente coberto, assim como funciona a natureza. “Um solo protegido está menos vulnerável à erosão. A erosão é tudo o que é indesejável ao ambiente. Não só ao produtor, que perde fertilidade, matéria orgânica do solo, operações que precisam ser refeitas, mas ambientalmente”, descreve Salton. Afinal, o mais comum é que tudo o que escorre de um solo vai para rios e mananciais.
Os benefícios ambientais vão além do que os olhos veem. “Toda planta, para se desenvolver, retira carbono da atmosfera pelo processo de fotossíntese. Se esta palha é mantida no solo ou se as raízes que crescem no interior do solo são constituídas de carbono – que é a fonte de matéria orgânica para os micro-organismos e para a atividade biológica -, então é uma forma ‘normal’, vamos chamar assim, desse processo da natureza retirar carbono da atmosfera”, detalha. Com bom manejo, o carbono será mantido no solo, não voltará para a atmosfera. Ou seja, há o sequestro de carbono, que é a fonte de matéria orgânica.
Portanto, a cobertura protege a superfície, sobretudo em períodos de carência de chuvas, pois a palha mantém o solo mais úmido – o que é uma bênção, sobretudo em períodos de estiagem – e ainda diminui o uso de insumos, pois faz a reciclagem de nutrientes ao resgatá-los das camadas mais profundas. “Um solo com mais carbono é mais fértil porque uma série enorme de processos é beneficiada pelo aumento do teor de matéria orgânica, desde a maior eficiência dos insumos, a qualidade dos solos, retenção de umidade, degradação de pesticidas”, sintetiza Salton.
Rotação de culturas
Outro princípio vital do sistema plantio direto é a rotação de culturas. “Quando rotaciono diferentes plantas num mesmo ambiente, eu estou promovendo diferentes microrganismos. Começa pela questão biológica. Hoje, a biologia é o que a gente menos conhece. Mas, com certeza, com distintas plantas, eu tenho diferentes mecanismos de ação e diferentes atividades relacionadas a nutrientes”, resume a importância da ação o engenheiro agrônomo Felipe Bertol, pesquisador da Fundação MT.
E a matéria orgânica é a “casa” de nutrientes importantíssimos para a produção agrícola como nitrogênio, enxofre, fósforo. “Todos os micronutrientes têm uma relação com a matéria orgânica”, lembra. “Quando faço a diversificação da microbiota e, consequentemente, há favorecimento da matéria orgânica, essa matéria orgânica acaba se maximizando”, complementa. “Mas não só isso. Quando há uma variação de sistemas radiculares no solo, também há uma formação de bioporos diferentes. Isso impacta desde o aprofundamento de raízes, de acesso a camadas mais profundas, aumenta a caixa d’água, assim como incorpora carbono com profundidade”.
E há ainda as melhorias no aspecto de fitossanidade da lavoura, como o controle de nematoides e de inóculos de doenças, e a facilitação ao desenvolvimento de predadores naturais de pragas. Há famílias de nematoides cujas populações podem baixar a partir da introdução de espécies de braquiária, milheto, crotalária, estilozantes – as quatro mais comuns, conforme explica o pesquisador. Um exemplo de sequência de plantas no Centro-Oeste é de soja, milheto e algodão “São muitos benefícios porque estamos tentando imitar o que a natureza é em essência”, complementa. Já no Sul, ainda são possíveis os cultivos de inverno, como o trigo.
A Fundação MT mantém dois experimentos carros-chefes de mais de 15 anos em monocultivo comparado à sucessão de culturas e à rotação focadas em soja e plantios de segunda safra, além de calagem. “Depois de uma calagem bem feita inicialmente, a matéria orgânica e o sistema de produção impactam mais a produtividade da soja do que a calagem (que deve ser mantida)”, descreve. Já o monocultivo de soja sem a sequência na segunda safra é muito prejudicial à produtividade em paralelo à sucessão ou à rotação. Bertol lembra que a sucessão de culturas oferece ganhos similares à rotação, mas, em números, a rotação sempre ganha em produtividade.
O especialista acrescenta que doses altas de calcário favorecem o nematoide de cisto, um problema que é mais grave quando há baixa qualidade da matéria orgânica, justamente o que ocorre em caso de soja pousio e soja-milheto. Já num ambiente de rotação de culturas, a dose alta de calcário demora a expressar a quantidade do nematoide de cisto, uma consequência muito importante para a fitossanidade da lavoura. Nos experimentos, diz, se mostrou “muito evidentes” as vantagens da rotação e da sucessão sobre o monocultivo.
![](https://revista.agranjatotalagro.com.br/wp-content/uploads/2023/03/Solos-Reportagem-de-Capa-Fundacao-MT-FOTO-4-1024x768.jpg)
A revolução – ou salvação da lavoura – chamada plantio direto
Pouco mais de cinco décadas atrás, os solos brasileiros foram submetidos a uma verdadeira revolução chamada de plantio direto. E a tirana retirada do poder atendia pelo nome de “erosão”. A prática de plantar sem aração e/ou gradagem evoluiu para sistema plantio direto (SPD) e, então, passou a atender aos princípios de não revolvimento do solo, da manutenção permanente de sua cobertura com culturas e palhada e da implementação de um manejo em que espécies vegetais diferentes se revezam no mesmo terreno.
As três práticas juntas causam um efeito que poderia ser chamado de mágico para o solo render muito: “Elas têm a capacidade de potencializar a vida de macro e microrganismos que estão em constante atividade no solo, atuando na decomposição da matéria orgânica, disponibilização de nutrientes, manutenção da estrutura do solo e equilíbrio do ecossistema que, por sua vez, reflete em melhor aproveitamento dos nutrientes e disponibilidade de água para o desenvolvimento das plantas”, elencam Jônadan Ma e Jeankleber Bortoluzzi, respectivamente, presidente e gerente de Projetos da Federação Brasileira do Sistema Plantio Direto (Febrapdp).
Os dirigentes lembram que o primeiro grande “acontecimento” a que a agricultura brasileira se submeteu foi a Revolução Verde, nos anos 1960. A adoção de tecnologias modernas em insumos, máquinas e melhoramento genético, além de investimentos e conhecimento, catapultaram a produtividade e a produção agropecuária. O segundo “acontecimento” foi a chegada do SPD. “Ele foi introduzido como uma técnica para mitigar a problemática da erosão em solos brasileiros e se tornou muito maior que isso, devido a todo um grande leque de benefícios que essa técnica trouxe para solo, plantas e meio ambiente”, acrescentam.
Efeitos ao meio ambiente
Ma e Bortoluzzi ainda destacam que a prática é uma grande aliada do meio ambiente. A exemplo, o Plano ABC (Plano Setorial de Mitigação e de Adaptações às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura) tem o SPD entre os sete principais programas de mitigação a serem trabalhados na agricultura brasileira. “Devido à grande capacidade do SPD de sequestrar e reter, no solo, o carbono que é produzido no dia a dia, principalmente por nós, seres humanos, pelas indústrias, nas cidades e pela atividade agropecuária, diminuindo, assim, a emissão do carbono e os efeitos do aquecimento global”, justificam.
Conforme eles, estudos como os conduzidos pelo professor João Carlos de Moraes Sá, integrante da Febrapdp, comprovam que solos bem manejados com SPD – por um longo período de tempo – têm a capacidade de reter tanto quanto e, até mesmo, mais carbono do que o seu bioma natural de origem, ou seja, a floresta. “Esse estudo é base de um projeto muito grande, celebrado entre a Febrapdp e a Fundo Euro Clima+, e que está prestes a iniciar, neste ano. Dentro de 24 meses pretendemos divulgar os resultados desse trabalho realizado nos quatro principais biomas no Brasil (Pampa, Mata Atlântica, Cerrado e Amazônico), espaços onde estaremos monitorando o carbono em até um metro de profundidade em solos com SPD consolidado e comparando-os com áreas do bioma original e áreas degradadas”, descrevem.
O absurdo da volta das grades
Apesar dos comprovados benefícios do SPD, nem sempre a prática é adotada em sua plenitude. Ma e Bortoluzzi listam como maiores equívocos dos produtores o imediatismo, a falta de conhecimento e o comodismo. “Pois está sendo mais fácil e prático comprar pacotes ditos tecnológicos, tomar decisões sem base em diagnósticos da real necessidade das plantas, do solo, do ambiente e da propriedade rural, safra após safra. Isso faz com que não sejam seguidos os três princípios fundamentais do SPD”, lamentam. “Infelizmente, ainda percebemos muita resistência e, até mesmo, negligência na adoção da rotação de culturas, da cobertura permanente e, pior ainda, do mínimo revolvimento do solo. Haja vista estarmos vendo assombrosamente o ressurgimento de gradeações e subsolagens sendo adotadas sem critério algum”.
![](https://revista.agranjatotalagro.com.br/wp-content/uploads/2023/03/Solos-Reportagem-de-Capa-Luis-Wagner-Rodrigues-Alves-Embrapa-FOTO-5-1-1024x768.jpg)
Da monocultura do arroz à ‘loucuraiada’ de 14 espécies (apenas de cobertura)
O produtor José Eduardo Macedo Soares, mais conhecido por Zecão, acompanhou bem de perto – ou melhor, de dentro – o salto e a evolução da agricultura degradante para a altamente conservacionista no Centro-Oeste. Quando começou a vida de agricultor, em Lucas do Rio Verde/MT, em 1986, o único cultivo viável na região era o arroz de sequeiro. Ele mesmo diz ter muita “experiência na monocultura do arroz” que, em três a quatro anos, “praticamente inviabilizava” a cultura no mesmo talhão. Uma situação muito mais drástica que hoje, com “soja sobre soja há 40 anos, em todos os anos, e ainda produz alguma coisa”, compara.
“E foi aí que comecei a prestar atenção na minha propriedade e na importância da diversidade de culturas, de raízes”, revela. Mas a arrancada foi bem complicada, pois, à época, na região, era mínima a experiência com o plantio direto, prática que ganhava extensão na Região Sul, este um ambiente com mais possibilidades de cultivos e, sobretudo, com chuvas o ano todo. “Aqui no MT, não tínhamos as opções de clima nem de plantas de cobertura”, conta.
No entanto, Zecão já observava a exigência de utilizar a diversidade de plantas para o plantio direto, tendo em vista os muitos problemas de erosão. Afinal, apesar dos terrenos não serem ondulados como no Sul, o preparo do solo era convencional com grade, niveladora – o que pulverizava e destruía a estrutura física do solo. Além disso, o plantio da soja era só em novembro, sendo que, já em setembro e em outubro, o início do período de chuvas causava erosão. “Era uma coisa horrível”, define. Então, ele quis implementar outra forma de cultivo, ou “outra metodologia de plantio de grãos”.
As dificuldades por conta da falta de subsídios e o conhecimento foram gigantes, até porque a fazenda dele foi a primeira na região a realizar o plantio direto, então como um experimento na safra 1987/88. Em 1989, o milheto foi a espécie estreante como cobertura. “Foi evoluindo aos poucos até que surgiu o milho safrinha. Passamos a plantar a soja mais no cedo, início de outubro, com variedades mais precoces”, conta. A experiência com milho também foi heroica, afinal não havia informações sobre seu cultivo e muito menos híbridos adaptados, nem chuva a partir de abril, isso tudo numa altitude baixa para o cereal.
“Foi assim que começou o plantio direto”, recorda Zecão. Sim, foi só o começo, porque a evolução tem uma nova história. “Achávamos que era o suficiente… estou protegendo o solo com palhada… e aí começaram a surgir os problemas em vários talhões, um grande problema na década de 1990, principalmente na segunda metade, de nematoide”, prossegue. “Apesar de o solo estar coberto com braquiária – e poucas pessoas fazem até hoje –, que, no início, já coloquei em consórcio com o milho achando que estava perfeito, vi a necessidade de trabalhar com a diversidade de plantas”.
Assim, no início dos anos 2000, a proposta foi passar a fazer o planejamento de longo prazo de rotação de culturas. Hoje, por vezes, no lugar da soja há o cultivo para sementes de arroz. “As melhores produtividades da soja são em talhões após a rotação no ano anterior com arroz e mix de plantas de coberturas. Esse sistema de produção proporciona uma melhor estabilidade na produtividade da soja”, ressalta. No inverno, milho sempre consorciado com a braquiária, ou crotalária, ou trigo mourisco, ou consórcio triplo milho + braquiária + crotalária. E, na outra metade da fazenda, depois da soja, consórcio de plantas de cobertura, dois consórcios de nove espécies em cada qual.
![](https://revista.agranjatotalagro.com.br/wp-content/uploads/2023/03/Solos-Reportagem-de-Capa-Zecao-FOTO-6-1-1.jpg)
Imitar a natureza
“Qual é o princípio? O que todo mundo fala: é a importância de se imitar a natureza, a diversidade de plantas e de raízes. Observa-se o bioma nativo da propriedade. E se tenta imitar isso aí dentro, num sistema de produção de alimentos de escala e de qualidade”, argumenta. Segundo ele, o consórcio de plantas de cobertura “passou a dar um resultado fantástico, um milagre”. Ainda que nem sempre com incremento de produtividade, porém, com estabilidade. “A estrutura física do solo é muito melhor devido à diversidade de raízes, e raízes pivotantes, uma ciclagem maior de nutrientes”, acrescenta.
“O mais importante: a gente observa o reequilíbrio da biota do solo, dos microrganismos do solo. Acabou a reboleira do nematoide. A gente faz análise de solo e tem população de nematoide, mas está em equilíbrio, tem os inimigos naturais”, observa. “Eu estou criando os bichinhos para competir com os nematoides, a batalha do solo microscópica que não enxergamos, mas temos noção que ocorre. Tem dado resultado muito interessante”.
Tudo foi uma sequência e em conexão. O início foi o enfretamento da erosão, que levou à proteção do solo com cobertura, ao milho e sorgo safrinha, sempre consorciados com braquiária (o que melhorava a estrutura física do solo), à ciclagem de nutrientes, à necessidade de aumentar a diversidade de plantas e a muito mais. “E como consequência, vimos explodir a vida no solo”, comemora Zecão.
Hoje na propriedade de 1.200 hectares, que também abriga uma granja de suínos que gera biofertilizante, são trabalhadas de 12 a 14 espécies diferentes de cobertura. Em todos os anos, são introduzidas novas espécies. As novidades do momento são o cártamo e o gergelim não comercial, com sistema radicular totalmente diferente das demais. “Não é o princípio do Zecão. É o princípio de quem está mudando, partindo para uma agricultura mais sustentável e está vendo que o caminho é este”, ressalta. “Exemplo do Brasil para o mundo. O Brasil hoje tem a agricultura mais sustentável do mundo. Eu recebo na minha fazenda gente de vários países para ver a ‘loucuraiada’ que estamos fazendo aqui e com sucesso”.
Leia também: