Sistemas integrados mais sustentáveis e rentáveis abrem novas fronteiras agrícolas nas propriedades e impulsionam produtividade pecuária
Thais D’Avila
As vozes de quem cria gado nos sistemas de integração lavoura-pecuária (ILP) ou de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) com seriedade e dedicação são uníssonas na defesa da atividade como retentora de carbono e, especialmente, como forma de agregar mais rentabilidade à produção. As mesmas vozes também convergem que o foco dos sistemas integrados – mais do que somente na agricultura ou na pecuária – precisa ser em gestão. “Quanto mais complexo o modelo, quanto mais fatores você precisa administrar ou quanto mais intensivo for o modelo de negócio, mais intensiva tem que ser a gestão. Então, o produtor pode ser ‘fera’ na parte técnica, mas, se for ruim na parte de gestão, terá muita dificuldade de abraçar a causa da integração lavoura-pecuária-floresta ou da integração lavoura-pecuária.” A opinião é do engenheiro agrônomo Rodrigo Paniago, integrante da Associação dos Profissionais de Pecuária Sustentável (APPS), que atende a diversos projetos de ILP e ILPF em todo o País. Segundo ele, o produtor, em geral, precisa se modernizar. “Não dá mais para ficar no modelo antigo de gestão, que era daquele do bloquinho no bolso da camisa. Isso aí já é coisa do passado”, pontua.
Mas será que os sistemas integrados se prestam a todos os perfis de negócio e de criação? Segundo Paniago, a necessidade de focar em gestão talvez mostre que não. Isso porque precisam ser observadas muitas questões, como limitações de solo, relevo e clima, que podem impedir a entrada da lavoura ou até mesmo da floresta. Entretanto, diz, o uso da integração lavoura-pecuária vem aumentando em áreas que, antigamente, a pessoa nem pensava em plantar soja, por exemplo. “É o capim abrindo espaço para a soja entrar em áreas que, anteriormente, ninguém queria para a lavoura.” Então o sistema integrado de produção “não é para todos, mas seu potencial já é bem maior do que se previa no passado”, conclui.
É o caso do engenheiro agrônomo e produtor José Leandro Peres, proprietário de duas fazendas localizadas na Amazônia Legal, ao Norte de Mato Grosso (MT). Quando a família adquiriu as terras, nos anos 1970, tinha o direito de produzir em 50% da área e a obrigação de manter o restante como reserva florestal. Anos depois, o percentual de preservação subiu para 80%. Ou seja, a cota legalmente permitida para a produção caiu para 20%, cabendo aos proprietários a responsabilidade e os custos da área inteira. “É uma guerra constante. Se tivermos que restituir os 80%, Mato Grosso quebra inteiro”, dispara.
A situação levou o pecuarista a buscar alternativas para aumentar o desfrute e garantir a rentabilidade da propriedade. Depois de formado em Marília (SP), no início dos anos 2000, e de se deparar com a pecuária extrativista em Mato Grosso, percebeu a necessidade de tecnificar a atividade. Das duas propriedades, localizadas em Nova Guarita (Fazenda Pontal) e a em Terra Nova do Norte (Fazenda Flor da Serra), uma apresentava dupla aptidão produtiva. “Essa proibição, por um lado, foi até boa, pois nos provocou a pensar melhor e a produzir mais, levando-nos para uma zona de excelência”, afirma Peres.
Na Fazenda Pontal, onde a pecuária reina absoluta, Peres introduziu a agricultura e conseguiu aumentar a produtividade do solo com a reforma de alguns pastos. “A agricultura é o ‘mal necessário’ para aumentar a fertilidade do solo e beneficiar a pecuária”, brinca. Desde 2004/2005, o gestor utiliza 50% da área da propriedade com ILP. “Os 30% recomendados pela Embrapa no início do Programa ABC não nos deram segurança. Com 50% de integração, conseguimos ter produtividade e receita sustentáveis”, revela. Os resultados logo apareceram: nas áreas sequestradas para a agricultura, a lotação do gado aumentou em três vezes. Hoje, a empresa tem uma taxa de desfrute de 82%, contra a média de 34% obtida na região.
O alto índice de desfrute deve-se também à inversão da estação de monta. Contrariando o tradicional calendário da pecuária no Brasil tropical, Peres passou a produzir bezerros na época da seca (entre maio e outubro) para desmamá-los no auge das chuvas (entre novembro e abril). Com a oferta do pasto vigoroso, proveniente da lavoura de soja, o criador evita o estresse da falta de alimento para a bezerrada, que entra em confinamento tão logo começa a seca e com abate já previsto para dezembro. “Com isso, conseguimos adicionar categorias que não tínhamos na fazenda – como a recria e engorda”, pontua o produtor.
A integração também permite que a propriedade seja utilizada o ano todo. “Em meados de setembro, entramos com a soja, colhida em fevereiro, abrindo área para que toda a propriedade seja ocupada com o pasto. Em seguida, entramos com o gado na área pós-soja, onde temos capim até agosto e setembro”, detalha. A prática proporciona que a Fazenda Pontal tenha, justo na época da seca, o maior volume de pasto. “Mantemos o gado na fazenda, só que diluímos os animais no campo, transferindo 50% dos que estavam nos pastos perenes para as áreas de integração”, ressalta. O retorno aparece nas quase 17 arrobas produzidas por hectare/ano. “Isso a partir de uma lotação situada entre 2,5 e 2,8 unidades animais (UA) por hectare enquanto a média é de 0,7 a 0,8 UA”, comemora o produtor.
Outra prática adotada na Pontal é não engordar 100% dos bezerros da safra. Só ficam para a engorda na fazenda os melhores machos Nelore (acima de 230 quilos) e Angus (acima de 220 quilos). Assim ocorre também com os nascidos na Flor da Serra, a outra propriedade da família. “Como eles são superiores, conseguimos ter a média de ganho diário maior. Os demais são vendidos, mas ainda são ótimos animais, acima da média”, conclui.
Ensinamentos da agricultura
Há mais de quatro anos, a produção de todo o pasto na Fazenda Pontal é calculada. Para isso, utilizam um software chamado Gerente de Pasto, que permite saber quanto é produzido de forrageira ao longo do ano, para ter a sustentabilidade da lotação. “Se o plantel cresce, temos que aumentar a pastagem; se baixa, direcionamos a área para a soja. Temos os números focados no que precisaremos”, explica Peres. E as áreas de pasto que não desempenham bem em capacidade de lotação vão para uma etapa de “julgamento”. Se tiverem capacidade de melhorar após adubação, elas passam por reforma. “Ou, se a logística for interessante, viram lavoura de soja.”
Além do gerenciamento de pasto, a Fazenda Pontal teve na agricultura um ensinamento importante, que é a agenda. Quando está na época de plantar, a propriedade precisa estar com todos os insumos prontos em outubro e, em 115 dias, tem que colher. “Trouxemos isso da agricultura para a pecuária: independentemente do que acontecer, não adiamos serviços como estação de monta, entrada e saída de confinamento e outras atividades. Tentamos fazer com que a mesma agenda da agricultura seja a da pecuária.”
O produtor Ricardo Rezende, da Fazenda Santo Antônio das Lendas, de Cáceres, em Mato Grosso, concorda. Para ele, mais do que criador de boi, o pecuarista é o “agricultor de capim”. Sua empresa conta com quatro propriedades, duas das quais produzindo atualmente sob o sistema de ILP, em Cáceres e em Araputanga. As outras duas, dedicadas à cria, ficam em Santo Antônio do Leverger, e já experimentaram, há mais de 20 anos, a ILP. Na época, as variedades de soja utilizadas não responderam bem, mas uma nova tentativa está no radar dos proprietários. “Estamos pensando seriamente em fazer integração com algumas categorias, como as vacas de descarte, que ficaram vazias na estação de monta. Usaríamos o pasto pós-soja para melhorar a condição nutricional e corporal das fêmeas jovens, ampliando o índice de prenhez, principalmente nas primíparas”, diz Rezende.
O investimento nos 700 hectares de integração lavoura-pecuária em Cáceres começou há três anos, com objetivo de produzir soja e milho para consumo em confinamento. Com um ano de estiagem no meio do caminho, a expectativa é de que o investimento em maquinário comece a se pagar em dois anos. Conseguimos fazer uma amortização considerável com o sistema ILP”, pontua o criador. A única operação ainda terceirizada é a colheita, realizada com equipamento locado. “Criamos uma nova estrutura de solo, ampliando a capacidade de suporte. Enquanto um boi entra no semiconfinamento pesando entre 380 quilos e 420 Kg, um bezerro entra com 240 kg a 250 kg, fazendo com que consigamos criar quase o dobro de cabeças na mesma área”, exemplifica. O pecuarista não minimiza a importância dos índices pecuários, mas admite que o mais importante é a diferença entre o quanto desembolsa para produzir e o quanto volta para o bolso. “Com um manejo desses, antecipamos o abate em três ou quatro meses. É quase um terço de antecipação, o que faz diferença no meu fluxo de caixa.”
Tripé de sustentabilidade
Para um dos proprietários da Estância do Chalé, de Cachoeira do Sul (RS), Ricardo Eichenberg De Lara, os benefícios da pecuária à agricultura são de difícil mensuração, pois os considera indiretos e impossíveis de serem medidos de forma isolada. Como exemplo, cita a revitalização do solo obtida entre uma safra e outra de arroz, quando plantou soja no verão e colocou o gado a comer azevém e trevo-persa no inverno, com rendimento de 350 quilos, para eliminar a infestação de arroz vermelho. “Hoje, essa área está limpa, espetacular”, comemora. A propriedade tem 3.462 hectares e, além de arroz, cultiva soja, milho, pastagens de verão e mantém campos nativos. Na pecuária, fazem ciclo completo e produzem touros Angus, totalizando 2,1 mil cabeças de Angus, Brangus e Ultrablack.
A preocupação com a “pegada” ambiental e social, além da econômica, ficou mais forte com a entrada da terceira geração da família na gestão da propriedade. De Lara, duas filhas e dois sobrinhos encararam o selo de “Empresa B” como um objetivo a ser alcançado. O modelo de negócios prioriza a responsabilidade de cada empreendimento em ser o “melhor para o mundo e não a melhor do mundo”. Um dos sobrinhos, Tomás Ko Freitag De Lara, que mora no Rio de Janeiro, é um dos idealizadores do certificado “Empresas B” no Brasil, ideia que trouxe para implantação na fazenda e que vem sendo encarada com muita responsabilidade por toda a equipe.
Geração de energia solar, projetos para colocar a floresta também na integração e cuidado na escolha de fornecedores e parceiros são algumas das medidas adotadas. “Entrego, por exemplo, minhas embalagens de defensivos para uma empresa especializada na coleta, mas não me basta pegar o certificado. Tenho de conferir se a destinação está correta, não é simplesmente colocá-las no caminhão e entregá-las”, explica Eichenberg De Lara.
As exigências com relação às pessoas também levaram a propriedade a implementar modificações, o que, confidencia De Lara, foi bastante desafiador. “Tivemos dificuldade inicial com a equipe da pecuária versus a equipe da agricultura. Foi preciso voltar atrás no quesito técnico e trabalhar com as pessoas. Hoje não falamos mais de pecuária sem falar em agricultura e vice-versa”, explica o proprietário, que contratou até uma psicóloga para colaborar na integração dos funcionários.
Os desafios do Norte
A Fazenda Diana, localizada em Paragominas, Sudeste do Pará, possui uma área que totaliza 21 mil hectares. Como foi explorada antes de 2008, é 50% utilizada para pecuária, agricultura e reflorestamento. O local, que teve como primeira atividade a exploração de madeira, desde 2009, tem na ILP, na ILPF e na integração pecuária-floresta (IPF) a garantia de boas condições para as lavouras, para os animais, para o solo e para o microclima da região.
Marcus Ubiratan Almeida Vieira, gestor da fazenda, explica que o foco central do manejo está na qualidade das pastagens. “Em períodos de estiagem prolongada, as árvores fazem com que haja menor variação na temperatura e melhor decomposição dos seus nutrientes no solo. O capim, então, aproveita-se da melhora orgânica e brota com mais qualidade”, explica. Ele afirma que a quantidade de pasto obtida com a integração de florestas pode até ser inferior à dos sistemas convencionais, mas garante que a qualidade das folhas compensa, principalmente por manterem-se verde por mais tempo quando as chuvas diminuem.
A propriedade utiliza ainda outras práticas e tecnologias para otimizar o aproveitamento de recursos. Em mais de 300 hectares de área irrigada, utiliza pivô e gotejamento subterrâneo, processo que promove uma economia de 40% na energia elétrica. “Se considerar que conseguimos fazer três safras por ano, são 1.024 hectares cultivados anual mente em área irrigada. Isso mostra que não precisa abrir mais áreas. Conseguimos produzir mais em menos áreas com tecnologias sustentáveis”, pondera.
Na área irrigada, Vieira utiliza eucalipto e Capim-Zuri para as 1,5 mil cabeças Girolando com lotação entre 11,5UA a 12 UA por hectare. Na área de sequeiro, a opção é pelos capins Mombaça, Massai, Piatã, Andropogon, Braquiarão e Quicuio, que servem aos quase 5 mil meio-sangue Angus, com lotação média anual entre 2 UA e 2,5 UA, dependendo do regime pluvial. Na parte agrícola irrigada, a fazenda cultiva milho, soja e gergelim em rotação. Já na de sequeiro, produz capim para servir no cocho. E, para reduzir a pegada de carbono, utiliza um biodigestor com dejetos da pecuária leiteira – que gera o chorume utilizado na fertirrigação –, e energia renovável. Com isso, gera 45 mil quilowatts/mês, que atendem a parte da energia da propriedade.
Carne Carbono Neutro
Para o pecuarista Antônio de Salvo, da Fazenda Canoas em Curvelo (MG), a pecuária tradicional, com pastagens bem conduzidas, adubadas e altamente produtivas, com gado de qualidade, já pode ser considerada carbono neutro. “Nem é carne carbono neutro, é carne carbono positivo”, compara. Mas explica que, mesmo assim, o sistema integrado com florestas permite ao criador ampliar sua produtividade por hectare em duas vezes ou mais. “É claro que existe um custo de implantação, atenuado em dois anos de lavoura. A partir do segundo ano de lavoura com capim, o produtor já pode entrar com o gado e ter a pecuária normal.” Segundo ele, a partir do sétimo ano de ILPF, além do lucro da pecuária, há o incremento da comercialização da madeira, com rendimento de 20 metros a 25 metros cúbicos ao ano por hectare.
O uso da ILPF começou na fazenda em 2008, em 100 hectares. “Utilizávamos estaqueamento de 12 metros de fileiras, com três metros entre as árvores”, diz. A opção foi plantar milho e sorgo por dois anos, e depois, braquiária. A partir de 2014, a opção pelo sistema tomou 1,55 mil hectares. Em 2016, por meio de parceria com a Embrapa, a propriedade passou a trabalhar com o projeto de carne carbono neutro, medindo o sequestro de carbono obtido não só pelas árvores, mas também pelas gramíneas (pastagem).
Com 27% de área preservada dentro da fazenda (20% da lei mais 7% de área de preservação permanente), o pecuarista, que também é presidente da Federação da Agricultura de Minas Gerais (FAEMG), explica que, hoje, a propriedade familiar centenária está muito mais benéfica ao meio ambiente do que na década de 1940, quando não existia reserva legal, nem matas ciliares. “Depois de 80 anos, temos 1,5 mil cabeças com muito maior desfrute, são três vezes mais cabeças dentro da mesma área”, comprova. Além disso, lembra, a terra não tem erosão, solo desnudo, nem riachos sem mata ciliar.